A Igreja é sujeito e objeto da fé: sujeito enquanto “Povo de Deus”, objeto enquanto “mistério” e “sacramento de salvação”. Sua meta é o Reino de Deus, Reino de justiça e solidariedade, de misericórdia e paz. O anúncio e o advento do Reino colocam a Igreja permanentemente em estado de penitência e missão. A missão da Igreja, que emerge de sua origem e estrutura trinitária, é defender a plenitude da vida de todos e a integridade da vida de cada um. Essa luta pela vida que Deus nos deu inclui os espaços particulares e regionais, e, ao mesmo tempo, ultrapassa todas as fronteiras geográficas, étnicas e culturais.
A missão em defesa da vida
envolve a imagem de Deus. É a luta por algo absoluto. A missão é universal e
urgente como a vida (I). Esta missão, porém, não envolve somente uma imagem
abstrata de Deus, mas um Deus Emanuel que se encarnou no mundo em Jesus de Nazaré.
Por isso a missão é histórica. Nas sandálias dos missionários há poeira e
sangue. A inculturação bem-sucedida de ontem, hoje pode representar um peso
morto (II). A missão estabelece relações novas. A missão é relacional e
multidimensional como as pessoas e os grupos sociais. Segundo seus
interlocutores, ela muda seu discurso, sua metodologia, suas prioridades. A
prática missionária, além de ser universal e contextual, é também sempre
específica (III).
FUNDAMENTOS TEOLÓGICOS
A Igreja é Povo de Deus,
comunidade constituída por comunidades que lutam pela vida a partir de sua fé.
Essa é a sua missão. Ela decorre de sua origem e estrutura trinitária.
A “natureza missionária” da Igreja tem sua origem no envio do Filho e na missão
do Espírito Santo, segundo o desígnio de Deus Pai (cf. AG 2). Sua estrutura é
trinitária porque ela é “Povo de Deus”, “Corpo do Senhor” e “Templo do Espírito
Santo” (LG 17).
“Povo de Deus” quer dizer “povo
eleito por Deus”. Sua “eleição” não significa “exclusividade”, mas “universalidade”.
O “hálito de vida” que Iahweh-Deus insuflou na “argila do solo” para
transformá-la num ser vivente “à sua imagem” (Gn 1,26s; 2,7) não é privilégio
de uns poucos. Desde a criação, a missão — enquanto luta pela vida segundo a
imagem de Deus — tem um destino universal. É uma luta micro e
macroestruturalmente articulada. A missão em defesa da vida segundo a imagem de
Deus é uma luta por algo absoluto. Por isso ela é vinculada ao monoteísmo, ao
Deus único que revelou em Jesus Cristo a superabundância da graça. A vida não
pode ser defendida por deuses exclusivos, que se combatem entre si, nem por
ídolos projetados por cabeças humanas. Ao afirmar a universalidade da missão da
Igreja Povo de Deus, defendemos a abertura e não exclusividade de contextos, sistemas,
grupos humanos e do próprio Deus. Por isso podemos dizer que, através da
Igreja, “todo o gênero humano” é chamado a constituir-se Povo de Deus para
restaurar o mundo em Jesus Cristo (cf. LG 1; 3; 28; AG 4). Os projetos
históricos dos povos estão relacionados ao projeto de Deus que é o Reino.
A missão da Igreja no mundo é
convocar a humanidade para a defesa da vida das criaturas e da criação de Deus;
convocar para a libertação do mundo. Essa missão de “convocação” e
“restauração” representa um exercício permanente de “abertura” e “inovação”;
uma luta histórica contra a “exclusão” e o “conformismo”. A missão é o “sopro”
que dá vida à “argila” teológica, pastoral e institucional da Igreja. A missão
não é apenas um eixo do “ser” eclesial, nem mero “departamento pastoral”, mas
fonte e princípio de vida. Isso dizemos ao afirmar que “o Espírito Santo é o
protagonista de toda a missão eclesial” (RM 21). Ele — “pai dos pobres” —
rejuvenesce, purifica e renova a Igreja (cf. LG 4). Sua missão no mundo começa com
sua conversão aos pobres.
Caminhos de aproximação
O significado da missão se
esclarece na relação entre Deus e a humanidade. Essa relação é uma história de
aproximação, comunicação, convocação e solidariedade. Ela é sempre ameaçada
pela ruptura do pecado: pelo distanciamento e pelo fechamento, pela dispersão e
pelo egoísmo. Segundo a tradição da Igreja, o conjunto dos povos vive — desde a
arrogância monocultural de Babel (cf. Gn 11) —, desarticulado na confusão
linguística, na dispersão geográfica e isolados entre si, sem Iahweh como
interlocutor. A confusão e a dispersão marcam, segundo os escritores da Bíblia,
e, mais tarde, os Santos Padres, o início da escuridão e perversão religiosa do
politeísmo e da idolatria, portanto, o início do paganismo. Os pagãos vivem na
dispersão geográfica, na confusão linguística e na escuridão religiosa.
Repetidas vezes os missionários
comparam a situação linguística das Américas com a “confusão de Babel”. “Na
antiga Babel houve setenta e duas línguas; na Babel do rio das Amazonas já se
conhecem mais de cento e cinquenta, tão diversas entre si como a nossa e a
grega”, lamentava o padre Antônio Vieira em 1662[1]. “Aquilo que os gentios imolam, eles o
imolam aos demônios” (1Cor 10,20). Nessa situação, Deus Iahweh está sem
interlocutor autorizado. Assim termina a proto-história do povo de Israel. A confusão
de Babel lembra a confusão do “princípio”, quando a terra ainda estava no caos
e a trevas cobriam o abismo (cf. Gn 1,2).
Os autores bíblicos
descrevem lahweh co um Deus das Alianças, do diálogo, do perdão e Palavra (do
Verbo). Nunca se produziu uma ruptura total entre Deus e a humanidade. A
desgraça de Babei se converteu, através de Abraão, em graça, bênção
e promessa para a humanidade (cf Gn 12). Em Abraão — homem da fé e do caminho —
Deus elegeu um novo interlocutor e retoma a história com a humanidade. Mas o
“antissacramento” da ruptura continua como ameaça no interior do próprio povo
eleito. Está presente na idolatria em torno do bezerro de ouro, na ruptura do
exílio, no gueto fundamentalista em torno da Lei e do templo dos
que voltaram da Babilônia até a crise de identidade da Igreja pós-pascal, por
causa do estatuto teológico dos pagãos. Como justificar a composição do Novo
Israel por Judeus circuncisos, segundo a Lei de Moisés, e pagãos juramentados
“apenas” segundo a Lei de Cristo? A ruptura entre Deus e seu próprio povo e as
rupturas no interior deste povo eram, e continuam sendo, ameaças concretas. E a
ruptura tem um nome comum: pecado pessoal, social e institucional (cf. Medellín 2,15
e DEV 44). E pecado significa “morte”. Seu autor é o diabo, que “é
pecador desde o princípio” (1Jo 3,8). Por sua “inveja entrou a morte no mundo”
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